Diário da Separação
Ele vai e volta!
Cada vez mais perdulário dos meus perdões.
Cada vez mais disposto a cobrir de velários
Meus velórios matutinos.
Ele chega menino e se vai vilão,
Zorro assombrando minhas carnes.
Mostra-se quase factível de mudanças,
Mostra-se quase afeito aos meus caprichos de fêmea.
Inferniza minhas ínguas, lambe minha pelve:
– Perverso!
Deposita escarros nos vasos da minha Casa.
E vai-se, Tarzan depois da gripe.
Enredado em seus cipós,
Distante do chão-pergaminho
Das minhas Vertentes.
Catedral de Marfim
Ele atropela regras de pertencimento
E toma posse dos meus feudos,
Naufraga em meus açudes rasos,
Desperta carícias clandestinas
Na corporeidade do desejo.
Decifra meus rastros arrastados no chão da Casa,
Lambe o osso exposto do meu sexo,
Rompe seus votos de castidade,
E me põe à vontade em sua Catedral de Marfim.
Ele é assim, afeito aos meus mistérios
E dono testamental dos meus dotes.
(e outros poemas)
O QUARTO
Rita Santana
O
amanhecer aqui, como em tantas partes, possui a litania dos
sobreviventes, peculiar. Prosseguir não é nada fácil, não é doce, exceto
aos dóceis, aos dúcteis, esses potentados herdeiros das débeis dádivas
divinas, dos assomos e acintes das castas castas. Ou então, aos bem
aventurados que vieram ao mundo com as partes pudendas voltadas para as
emanações lunares. De resto, só pedras, calhaus, cascalhos, mais pedras,
pó e sal. Pó aos que perseguirem quaisquer saudades de um futuro que
não vingou ainda. Pó àqueles que enfrentarem face a face a cara da
Medusa, musa absoluta e palpável dos que morrem em horas dispersas do
dia, e durante a noite sonham com olhos abertos e a alma dilacerada, em
chagas, em chamas. Pó àqueles que, contudo, ainda sobrevivem. Pó,
enfim, aos que ousam o verbo.
Estou
aqui, num quarto todo limpo e luminoso. O branco grudado nas paredes
sugere um ambiente de luz infinda. Todas as manhãs crepitam crepúsculos
inóspitos, e o primeiro pensamento que me vem é de infelicidade. Mesmo
no desespero do sempre, eu desperto e luto, luto contra esta sensação
advinda de lonjuras, onde não chego nunca, em mim talvez, ou no mundo
que é mais vasto e pode sediar agruras e agouros. Minhas armas são
afirmações declaradas de equidade.
As
noites são abusivamente noturnas, povoadas com cenas do passado, onde
os cadáveres pretéritos decidem simultaneamente a saída das tumbas, sim,
pois que estão mumificados em minha memória servil. Ontem ainda, a
rasga-mortalha rasgou com as asas a cortina da noite, proclamando a
minha morte seguinte, aviltando, desde então, o meu dia vindouro. Com o
seu grito agudo e oco bater intermitente de bico, todas as mulheres
encarceradas deste quarto gemeram, menos eu. Só eu permaneci dormindo
meu sono acordado, vigília constante que as bolinhas brancas não
conseguem apagar. Criei resistências, a cada dia crio mais resistências,
físicas e orgânicas. Os sobreviventes são assim, renitentes. Sim, eu
tive medo, tive muito medo, mas e daí? Quis colo, senti sede e fome,
senti rancores, ódio e medo, muito medo, mas e daí?
Elas
são três e não têm rosto, existe apenas a fundura impenetrável dos
olhos e a semelhança na ausência de peculiaridades faciais. São iguais a
mim na sorte. As roupas são as mesmas sempre: um guarda-pó branco de
botões dourados, uma pétala de mussenda-rosa no bolso esquerdo, e no
direito muitas bolinhas brancas para “distrair as idéias”. As sapatilhas
são forradas com lantejoulas douradas para combinar com os botões, tudo
muito direitinho. O quarto é todo limpo e luminoso, o branco grudado
nas paredes se estende pelas camas de cimento. As paredes são altas e
lisas, nada há de crespo nesse universo, onde o total é único. Muito
próxima ao teto, uma janela sempre aberta. E é para lá que temos, todas
nós, os olhos voltados agora. Todas nós.
Meu
pensamento vai trazer-te até aqui, onde eu me escondo e me restabeleço
do mundo. Sou mulher de muitas paisagens interiores, e descrevê-las
tornou-se o meu ofício. Ser flutuação de abismos e plantação de
mandioca. Ser, ser e ser. Eu quis ser em demasia, quis existir demais,
exagero de existência, por isso tão doída, por isso tão doida. Para que o
amontoado de palavras traga-me pistas de um farelo de pensamento capaz
de restituir-me à estrada, eu escrevo. Da infância, ficou aquela
sensação de que o meu pensamento representava a única existência
possível, o mundo só existia porque eu o pensava. Por isso me penso
tanto e me perco tanto.
Por
hora, deixa eu contar o que se passou comigo. Nós já éramos separação
irremediável, eu e você. Estávamos delidos, afinal, não tivemos, de
fato, uma estória. Tivemos, isto sim, breves ensaios com cenários
apropriados, marcação perfeita, e um texto aberto, aberto demais para a
objetividade concreta do mundo. E aí nos perdemos nas possibilidades de
leitura. Nada, de fato, dito. As entrelinhas nos esmagaram, e o orgulho
silenciou todo o resto. Agora, João habita em minha vida sem versos ou
sonhos. Mas não esquece, meu querido, que o instante abriga o ido e o
vindouro, e que isolar o momento é negar a continuidade do Absurdo.
Era
muito tarde para ter um quarto. A miséria instituída não permitia
isolamentos e, com o advento João em minha vida, o quarto surgiu como um
grande susto. Era engraçado e confuso porque eu poderia dizer “meu
quarto”, mas e ele, João? O que fazer com ele? Os quartos são adeptos da
antecedência, daí, a solução: tantos anos sem João ali, comigo. Era
preciso ser feliz sem invasores, sem bárbaros, e o marido é sempre um
bárbaro, sabia meu querido? Pois bem, as paredes permaneceram brancas e
vazias, toda a cor ficou o tempo inteiro ausente, e os meus olhos
percorriam os cantos em busca das referências, das lembranças, das
marcas. O desejo ficou amarrado ao pé da cama, desejo de brincar com o
meu mundo de significações pessoais, fazer daquele espaço um recanto de
relíquias. Eu não conseguia, os quartos são adeptos da antecedência.
Tudo era o vazio das paredes. Comecei a perder o pé das coisas ali, nas
paredes vazias do meu quarto. As vozes daqueles dias com João me
perseguem até hoje, eram vozes que viviam voando da minha boca com asas
de libélulas...
-
Rogo por tua velhice, João. Só para saborear a eternidade que quero
contigo. Enquanto houver cio em teu sangue, perecerei de ciúmes cênicos e
sofrerei com teu cinismo seco, arvorando sorrisos ante o meu cansaço.
- Madalena, eu...
-
Dê-me tua mão, João. Tens mãos de fêmea meu bem, e bravores de um Deus
todo maldito. Acontece, João, que tu és, em amplitude, um homem. Com
mãos de fêmea, é verdade, mas um homem. A mulher que te pariu é uma
serpente.
- Maldizer a minha própria mãe, Madalena! A casa...
-
Falo de sapiências, João, de sapiências. João, meu bem, o zelo de tua
casa me consome os anos, os sonhos, os planos. As borboletas amarelas
fecham-se e não mais retornam quando pisas em casa. O ar arrasta os
aromas da tua ausência. Só o teu cheiro impera. Sê maleável, João, tira o
calçado, o mundo inteiro te acompanha, quero-te em poeira própria.
- Deita um pouco Madalena...
Sentia.
Tudo que sentia era uma fraqueza no pensar, um tremor de idéias
abalando as mãos, e o meu corpo todo parecia repetir movimentos, os
dentes raspavam na boca um gosto de secura que a saliva não amaciava.
Naquelas horas, uma comoção me exaltava os ânimos, buscava a pia e
lavava pratos, muitos pratos, todos os pratos da casa e das casas
vizinhas, pratos limpos, pratos sujos. Nunca consegui tocar nos copos,
os copos abrigam bocas, impressas bocas que mangam de mim, e eu não
gosto. Eu tinha medo, muito medo dos copos.
-
João, meu bem, ando tendo ânsias de divindades. Não me peças para dizer
além. Tem paciência, João, cedo ou tarde recupero a distinção das
coisas. Tenho tido francos prazeres ao banho. O corpo adquire uma
dimensão erótica que o resto do dia não me proporciona. Toda a flacidez
adquire um ar possuível, tocável.
- Madalena, eu posso...
-
... e eu desejo o meu próprio corpo, João, tocando-o em funduras,
moleiras. O espelho ainda ousa revelar indesejares. Confesso
negligenciar tais pavores. O que fazer, senão aceitar a corrupção fértil
do tempo?
- Isso são sandices, Madalena, sandices.
-
Exegeses, preces, fragrâncias, ervas, bulas, burlescas saídas tenho
buscado para escapar das lituras que riscam minha alma. Tem paciência,
João, ainda aprumo os rumos, dou-te um filho.
-
Há no seu olhar um ontem que não havia, telepatia que não acompanho,
não aprendo, não contento. Quero olhar mais os teus dias Madalena.
Permita-me.
-
João. Tuas palavras são tardias. A ambrosia tem-me deixado iludida de
contentamentos, tenho frequentado o leito de Deus todas as noites e
engravidado de orgasmos exuberantes. Vem daí o o meu dilatar uterino
progressivo, tenho parido filhos do Criador. João, meu bem, o mundo não
vê, mas me sinto saciada, satisfeita, santa. Traze a cicuta, João, para
brindarmos a minha divindade oculta.
- Basta, Madalena, basta!
Meu
querido, hoje tenho um quarto todo limpo e luminoso. Vejo o meu
pensamento exposto em minhas mãos, trêmulo. E também eu tremulo,
tremulo. O mundo continua sediando agruras e agouros. João perdeu-se
arrastado pelo vento, pois, meu querido, o vento leva tudo, o vento é
vassoura do tempo, arrasta a gente pra longe, pra terras de nunca. O
amanhecer aqui, como em tanta gente, é turbilhão de pavores, mas eu
luto. Luto contra o aniquilamento que nasceu comigo e que me carrega, e
carrega os meus todos, minha gente, meus semblantes, minhas paisagens.
Continuo grávida de Deus, por isso, ainda ouso o verbo. Em João ainda
encontro respostas. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me
ama. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me ama. Meu querido,
quem me ama? João, o preferido entre os preferidos, quem me ama? Quem
recebe os meus preceitos e os observa é quem me ama? E o quarto? Quem
recebe, entre as mãos, os meus peitos, é quem me ama? Quem observa os
meus defeitos e os recebe, é quem me ama? E o quarto? Lave os pratos,
Madalena, vá rezar. E o meu quarto? Por isso tão doída e tão doida. Por
isso tão doida. Eu, Madalena, doida. Eu quis ser em demasia. Quis
existir demais.
O amanhecer aqui...
Conto do livro Tramela.
Foto: Edgard Navarro
RITA SANTANA - Sou uma mulher negra, apaixonada por palavras. A atriz não se aparta nunca de mim, serei atriz sempre. Sou escritora porque vivo da escrita, sem ela feneço, morro. Sou uma educadora apaixonada pela formação do cidadão leitor, pensante, falante. Eu sou de Ilhéus.
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